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Tempo de leitura: 6 min.
Tenho medo da tecnologia levar consigo toda minha humanidade.
Em parte porque não quero viver como um zumbi algorítmico, em parte porque em tempos de inteligência artificial a inteligência natural será um recurso escasso.
Uma preocupação paradoxal, pois a tecnologia deveria ser a glória da humanidade, o domínio sobre as coisas, no entanto, em vez disso insistimos em nos tornar parecidos com aquilo que criamos.
Não é de hoje que a sistematização das atividades humanas vem roubando nossa humanidade.
A ideia de divisão, simplificação, padronização e especialização das tarefas foi inicialmente postada em 1911 por Frederick Taylor em seu livro Princípios da Administração Científica.
De Taylor passamos pelo fordismo até chegar às corporações modernas que maximizam a produtividade para além das linhas de produção.
Mas não parou aí.
Com a chegada das tecnologias digitais, esses princípios ganharam uma nova dimensão. Desde 2015, a terminologia "taylorismo digital" tem sido empregada para descrever como a tecnologia moderna não apenas automatiza processos, mas borra completamente os limites entre tempo e espaço de trabalho — levando a racionalização taylorista para dentro de nossas casas e bolsos.

O custo do progresso
Como bem sabemos, o progresso da ciência e da tecnologia não só é inevitável como também desejável para o progresso econômico da sociedade. Contudo, todo esse progresso tem um custo — e não é baixo.
Vivemos em um mundo que empurra seus trabalhadores à incapacidade de chegar a um produto acabado, fruto de processos fragmentados em que cada pessoa é uma engrenagem que mal sabe o que produz. Pessoas que não se importam com o propósito daquilo que fazem, desde que consigam fazer cada vez melhor.
Humanização como produto
Foi no processo de tratar o homem como máquina que nos demos conta de que na verdade a produtividade aumenta quando aproximamos o ser humano da sua humanidade. Começou assim a crescer o interesse das corporações modernas pela temática da humanização. Tudo bem que raramente é pelo humano e quase sempre pela produtividade — mas há a tentativa de “humanizar” as relações corporativas.
No entanto, em um ambiente tecnocrático e cientificista, até as tentativas de humanizar seguem regras desumanizadas. Quando o objetivo é encontrar algo a ser medido, afasta-se a subjetividade e individualidade. Uma premissa compreensível quando o objeto de análise são máquinas, mas improdutiva e ilusória se a matéria é humana.
Classificar a felicidade, o medo ou qualquer outro traço humano em uma escala de zero a cinco não quantifica o sentimento — o destrói.
Foi nesses rompantes de engenharia da humanização que terminamos em dinâmicas onde todos se abraçam, mas muitos se odeiam. Uma pseudo-humanização corporativa pode em breve se tornar dispensável. A Inteligência Artificial promete resolver de vez o "problema" da humanização, eliminando de vez o humano.
O valor do humano
Do turbilhão de futuros incertos, arrisco-me a tirar uma certeza: o humano será cada vez mais valorizado.
Se as corporações descobriram que a humanização (mesmo artificial) aumenta produtividade, os dados sugerem uma evolução: a McKinsey prevê que habilidades sociais e emocionais genuínas serão 26% mais demandadas até 20301. Não se trata mais de "humanizar" processos, mas de valorizar o que é autenticamente humano.
Entretanto, há um obstáculo nesse caminho: de tanto "humanizarem" processos corporativos, desgastaram o sentido da palavra. Humanização virou jargão, perdeu substância. Por isso, vejo a necessidade de relembrar o que significa ser humano. Não no sentido corporativo de "gestão humanizada", mas no sentido mais profundo: somos mais humanos à medida que ampliamos nossas experiências — sensoriais, afetivas, cognitivas, relacionais.
A tentativa de sistematizar a humanização revela sua própria contradição. Como observa Alexandre Seraphim, "uma abordagem meramente técnica, cognitiva e comportamental nunca produzirá um efeito genuinamente humanizador"2 — é como tentar guardar bolhas de sabão em gavetas.
Estar vivo é o ponto de partida, mas para ser humano é preciso ir além: cultivamos nossa humanidade na medida que vivemos experiências, ampliamos o campo da visão, das sensações, dos sentimentos… à medida que vivemos. Mas não apenas isso: é preciso internalizar e integrar essas vivências na formação do nosso ser, em nossa cosmovisão.
Além da Sobrevivência
Com cada trabalho sendo automatizado, é impossível prever quando seremos descartados junto com a versão obsoleta da IA. O caminho para ser insubstituível não está mais no desenvolvimento de competências técnicas, o caminho para não ser descartado é manter-se humano.
Uma afirmação que nos confunde pela sua falsa obviedade: é fácil pensarmos que já somos humanos. Entretanto, a tecnologia e o tecnicismo tirou de nós boa parte da nossa humanidade; a cada tecnologia incorporada em nossos dias criamos uma camada que nos distancia da experiência humana.
Pesquisadores da área de humanidades médicas identificaram que a desumanização contemporânea resulta justamente da "excessiva racionalização e tecnificação da vida"3.
A questão não está mais em usar ou não a tecnologia, os recursos de Inteligência Artificial, mas em como manter-me humano em meio a tudo isso.
Mas em nossa busca pela produtividade, nos afastamos de algo que nos torna mais humanos desde o surgimento da humanidade. Algo que passou por guerras e sobreviveu a desastres. Venceu fogueiras e ditadores. A literatura é o mediador daquilo que nos torna humanos.
Prometeu acorrentado
Só que com o tempo os livros, em especial os de ficção, foram sendo esquecidos, encobertos pela ideia de inutilidade e soterrados pelo bendito tecnicismo. Tanto é que hoje há a impressão de que é quase preciso pedir permissão para lê-los.
A academia em vez de facilitadora do fator humanizador da literatura muitas vezes a coloca em redomas inacessíveis aos “indignos”. Um Prometeu que por medo das correntes leva o fogo de volta aos deuses. E para piorar, converteu a literatura em instrumento de doutrinação enviesada pelos interesses ideológicos particulares dos que se assentam em torno dessa fogueira.
A viagem necessária
De tudo o que podemos fazer para mantermo-nos humanos, abrir um bom livro com o entusiasmo de quem inicia uma viagem talvez seja nossa melhor alternativa. Não a única, sem dúvida. Mas com toda certeza uma ferramenta indispensável, pois há experiências humanas que só a literatura pode nos proporcionar.
A literatura oferece algo que planilhas e métricas não conseguem capturar. Antoine Compagnon, ecoando Zola, reconhece que "as obras-primas do romance contemporâneo dizem muito mais sobre o homem e sobre a natureza do que graves obras de filosofia"4.
Não por diminuir outras disciplinas, mas por acessar a experiência humana em sua integralidade.
Não pense que este assunto termina por aqui. Se antes este enfoque humanizador da literatura já vinha sendo discretamente costurado nos meus textos, agora, que não preciso mais camuflá-lo com adornos de resultados imediatos, ele emerge como tema central por aqui.
Um abraço,
Zara
Escrevo sobre a circunstância humana na economia criativa.
Eu até poderia explicar como funciona o Clube Viventes, mas prefiro que você assista a esta aula aberta sobre O valor invisível do trabalho em que fui da arte à inteligência artificial em uma travessia entre cópia, trabalho e autenticidade.
Influências, leituras e referências
Chief Executive. "Why Soft Skills Will Be the Most Valuable Investment Your Company Can Make."
Gallian, D. & Seraphim, A. (2022). Responsabilidade humanística: uma proposta para a agenda ESG. São Paulo.
Gallian, D. M. C., Pondé, L. F., & Ruiz, R. (2012). Humanização, humanismos e humanidades: problematizando conceitos e práticas no contexto da saúde no Brasil.
Compagnon, A. (2012). Literatura para quê? Belo Horizonte: UFMG.
Acho que essa humanização depende também de espaços em que nos vemos livres da "roda de hamster" do trabalho pela sobrevivência e pela produtividade. Nisso, paradoxalmente, a tecnologia pode ajudar. Ela é ambígua como tudo o que é humano, mas o que se almeja com a tecnologia em última instância é nos livrar desse fardo do trabalho. Esse é a promessa. Não é evidentemente o que acontece hoje. Não se sabe se e quando essa promessa vai se cumprir. Mas caso ela se cumprisse, isso nos colocaria face a face com o problema do sentido que a maior parte das pessoas que vivem nas cidades modernas coloca debaixo do tapete ao fazer a roda girar dia após dia.
"Do turbilhão de futuros incertos, arrisco-me a tirar uma certeza: o humano será cada vez mais valorizado." De minha parte, ouso acrescentar: será cada vez mais perseguido; seja pelos que ainda preservam algo de humano em si, seja pelos que atuam a fim de destruir o humano em favor do Transumanismo.