Além da Dopamina

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A Síndrome do Protagonista

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A fantástica fábrica de Eus

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Zara
jun 12, 2025
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A Síndrome do Protagonista
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Opa! Zara aqui.

Esta é uma edição da Além da Dopamina, onde trago um toque de rebeldia intelectual para tempos de espetáculo e superficialidade.

Provocações completas para os participantes do Clube Viventes.

Ser um Vivente


Tempo de leitura: 15 min.


As Meninas (Velázquez) – Wikipédia, a enciclopédia livre
Las Meninas (1656) — Diego Velázquez

Quem cria quem?

Depois de apertar duas ou três vezes o botão soneca, o próximo passo é se arrastar até o banheiro — meio decididos a conquistar o mundo e meio atrasados para conquistá-lo. Entre escovas molhadas, sabonetes faciais e atrasos, sempre há tempo para uma olhadela nas redes sociais.

Talvez você tenha superado essas manhãs.

O vício em redes sociais ficou no passado. Parabéns. Mas você ainda está no YouTube; compra na Amazon; assiste qualquer coisa na Netflix; enfim, existe em algum perfil virtual.

Mas essa rotina esconde um mecanismo mais profundo: não estamos consumindo conteúdo, estamos sendo moldados por ele.

A verdade é que, desde que deixamos de usar a tecnologia e passamos a existir através e por meio dela, os algoritmos fazem parte de quem somos.

Dizem que foi em 13 de abril de 2007, quando o Google adquiriu a empresa de “publicidade direcionada” DoubleClick por US$ 3,1 bilhões, que nossos dados se tornaram o negócio e a mercadoria central para o capital digital.

Eu também já acreditei que a maior preocupação seria com a já extinta privacidade, no entanto, foi em contato com a pesquisa de Alberto Romele1 que pude começar a entender a dimensão real do problema.

Desde então, partindo da visão romeliana, cresce em mim a clareza do papel das tecnologias de personalização, que transformam cada interação em uma experiência egocêntrica, na forma como percebemos o mundo e a nós mesmos — e como elas favorecem problemas como a síndrome do protagonista.

Esta síndrome do protagonista, como veremos a seguir, não é um fenômeno psicológico isolado, mas resultado de transformações ontológicas2 produzidas pela própria tecnologia, tema central da análise de Alberto Romele.

Uma consequência psíquica de um sistema que transforma padrões em personas, em que cada usuário acredita ser o centro de sua narrativa, enquanto vive enredos que são variações de uma mesma fábula algorítmica.

Esta investigação nos levará da análise hermenêutica3 das tecnologias4 existenciais, passando pela reformulação do conceito de habitus para o contexto digital, até a caracterização da síndrome do protagonista como condição psicossocial universal da nossa era.

Hermenêutica digital

Romele propõe uma mudança na forma como compreendemos as tecnologias digitais: o abandono da perspectiva instrumentalista de que elas operam como meras ferramentas neutras.

Ele cunhou o conceito de tecnologias existenciais*, e defende que os dispositivos digitais operam uma transformação ontológica na própria constituição do sujeito contemporâneo.

Algo que faz muito sentido, pois ao abrir o Instagram, a aba de notícias ou qualquer interface digital, não estamos simplesmente usando uma ferramenta de comunicação — estamos ativando um filtro de compreensão que determina como o mundo nos aparece e como nós aparecemos para nós mesmos.

Vemos o mundo pelas lentes da tecnologia. E simultaneamente somos interpretados por essas mesmas tecnologias. Romele sustenta seu trabalho na hipótese de as máquinas digitais, como os algoritmos de machine learning, são máquinas de Habitus.

Do habitus bourdieusiano ao digital

Como uma reformulação crítica e atualizada do habitus bourdieusiano para o contexto contemporâneo, Romele nos apresenta o conceito de Habitus Digital

Para Pierre Bourdieu5, Habitus era o que faz com que cada membro de um grupo social se pareça; diz respeito ao indivíduo, mas vai além dele, pois despessoaliza o sujeito ao considerá-lo um mero representante daquele grupo.

O Habitus é, em outras palavras, um sistema de esquemas internalizados que geram todos os pensamentos, ações, desejos e percepções dentro de uma determinada cultura.

Romele destaca cinco aspectos do habitus bourdieusiano que são relevantes para os tempos digitais:

  1. O habitus é o que faz com que as decisões e ações individuais de cada membro de um grupo ou classe social se assemelhem.

  2. Ele forja não apenas ações, mas também desejos e aspirações.

  3. Impacta o tipo de relação que mantemos uns com os outros.

  4. Não está apenas cognitivamente incorporado, mas também corporificado em gestos, posturas, movimentos, sotaques, etc.

  5. Sua reprodução depende principalmente de instituições como a família, escola e outros grupos sociais.

Apesar de Bourdieu ter falecido em 2002, e não ter vivido as redes sociais, sua obra continua ecoando em trabalhos contemporâneos — como é o caso aqui.

Se o habitus bourdieusiano6 operava principalmente através de instituições sociais tradicionais, o contexto digital apresenta mecanismos inéditos de formação subjetiva que merecem análise específica.

Antes e agora

Uma mudança estrutural do tempo de Bourdieu passa pela dinâmica de funcionamento das tecnologias digitais baseadas em algoritmos, inteligência artificial e big data que constituem interfaces de serviços personalizados enquanto permanecem indiferentes aos indivíduos.

Esta indiferença caracteriza-se por duas dimensões fundamentais: primeiro, os algoritmos atuam fragmentando indivíduos em dados e recombinando-os em perfis estatísticos. Segundo, apesar de sua indiferença ao indivíduo, influencia a construção da nossa identidade com informações que absorvemos de forma inconsciente.

Surge uma nova interpretação que articula dimensões empíricas e ontológicas, estabelecendo a tecnologia não apenas como interface de mediação entre o humano e o mundo, mas como um "domínio independente capaz de construir uma interpretação que lhe é própria"7.

Um mecanismo que se forma e se modifica em tempo real pela interação contínua com sistemas que recebem, processam e respondem momento a momento a cada gesto, cada preferência, cada hesitação.

O habitus digital introduz uma novidade estrutural: os comportamentos individuais são processados coletivamente para a identificação de padrões entre indivíduos, que são agrupados para experiências futuras direcionadas.

Habitus Digital

O habitus digital é antes de tudo um habitus paradoxal: quanto mais personalizado, mais massificado — e maior será a influência dessas máquinas geradoras de habitus humanos.

Esta dupla dimensão das tecnologias de personalização constitui a base do habitus digital, pois prometem reconhecer e atender à singularidade de cada usuário, mas fazem isso através de mecanismos que transformam diferenças individuais em similaridades coletivas manipuláveis algoritmicamente.

Mas como consequência, elas achatam a autocompreensão individual ao reduzirem os indivíduos a categorias, tendências, classes e comportamentos — especialmente no que diz respeito à identidade e à interação com o mundo social.

Em essência, o habitus digital refere-se às disposições, habilidades e atitudes internalizadas que os indivíduos desenvolvem por meio de suas interações com as tecnologias digitais, e que, por sua vez, orientam seus comportamentos e escolhas futuras tanto no ambiente online quanto no offline.

Um ciclo que reinicia a cada atualização do feed do TikTok, Instagram ou qualquer interface controlada por essas tecnologias e encontramos conteúdos "novos" que são, na verdade, variações sobre temas já conhecidos.

A personalização algorítmica cria uma ilusão de novidade através da repetição sofisticada: os algoritmos nos apresentam constantemente conteúdos inéditos que confirmam padrões já estabelecidos.

O feed da sua rede social favorita não passa de uma surpresa previsível que opera dentro de margens de risco calculadas.

L'Empire des Lumières (1954) - René Magritte

Personalização sem personalidade

Cada interação digital é arquivada e processada como dado que influenciará as próximas iterações do sistema — a retenção algorítmica produz uma colonização técnica do futuro.

As recomendações personalizadas são sempre projeções estatísticas baseadas em comportamentos passados - tanto nossos como daqueles que o algoritmo decide que se parecem com nós.

A personalização produz assim a massificação através da segmentação: em vez de uma massa homogênea, temos múltiplas massas segmentadas, com cada indivíduo crente de sua singularidade.

A liberdade de escolha no ambiente virtual pode até existir, mas opera dentro de mecanismos com limites algoritmicamente definidos para canalizar nossa atenção em direções previsíveis.

Esta dinâmica se manifesta concretamente nas interfaces que utilizamos diariamente, onde podemos observar em operação os mecanismos que produzem essa ilusão de singularidade.

Mecanismos virtuais

Para compreender como essa massificação segmentada opera na prática, examinemos os mecanismos específicos das interfaces digitais.

Entre em qualquer rede social e encontrará ali uma versão algorítmica do seu “Eu”.

Peguemos o YouTube e seus bilhões de vídeos como exemplo: para nossa conveniência, sua interface nos conduz por meio de recomendações, trending topics, categorias pré-estabelecidas.

Entretanto, o algoritmo não apenas responde às buscas; ele faz uma leitura dos nossos padrões, decodifica-os e nos apresenta uma versão interpretada de nós mesmos através de suas recomendações; versão essa que ganha força em nós a cada interação com a plataforma — vamos nos tornando aquele que a tecnologia definiu conforme suas prioridades.

A arquitetura dessas interfaces não é neutra; ela é desenhada para direcionar nosso olhar, priorizar certas informações, facilitar determinadas ações e desencorajar outras.

Neste cenário, a novidade é sempre uma confirmação sofisticada de disposições já estabelecidas. O "novo" surge como reforço, expandindo nosso repertório dentro de um limite de parâmetros previsíveis.

O algoritmo do Spotify, por exemplo, sugere música "nova" baseando-se no que já ouvimos como também no que outros usuários com padrões similares ouviram. O futuro musical de cada usuário é uma extrapolação algorítmica de passados coletivos processados estatisticamente.

A tecnologia nos atende com conteúdos que são inesperados o suficiente para nos surpreender e adequados às nossas disposições existentes. Com isso, cada usuário acredita ter gostos únicos e personalizados, mas na verdade compartilha com milhares de outros usuários um perfil comportamental estatisticamente similar.

Surge dessa manipulação a circunstância ideal para a formação e o reforço de grupos massificados de usuários segmentados que compartilham padrões comportamentais similares, recebem recomendações convergentes e reforço permanente — as famosas bolhas.

Uma das coisas que mais me impressionou ao deixar de usar o Instagram com regularidade (rede que fui heavy-user) foi perceber como vivia em uma bolha que não dialogava com nada para além dela mesma.

Somamos a isso o design do feed infinito que incorpora uma intencionalidade específica: manter o usuário em estado de atenção flutuante e navegação contínua.

Os feeds personalizados revelam a tensão entre economia da atenção e personalização genuína.

A personalização serve menos a nós e mais à captura e controle da atenção. Contudo, essa ilusão de singularidade e centralidade gera milhões de protagonistas únicos performando scripts produzidos em massa pelos algoritmos — um tema que será tratado mais adiante.

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