Opa! Zara aqui.
Esta é uma edição da Além da Dopamina, onde trago um toque de rebeldia intelectual para tempos de espetáculo e superficialidade.
Provocações completas para os apoiadores premium.
Tempo de leitura: 9 min.
Conselho de mãe
Foge-me à memória a quantidade de vezes que minha mãe me disse que tinha jeito de professor; mas guardo ainda bem viva a lembrança de que, como um bom jovem, ignorei.
Hoje sei que ela, como toda boa mãe, tinha razão; mas não foi fácil chegar a essa conclusão.
O texto abaixo foi a fagulha de uma chama que arde até os dias atuais. O trecho, de Louis Lavelle, me colocou em um estado de desorientação ao perceber que as coisas eram mais complexas do que pensava até então — e, sobretudo, que estão em conexões recíprocas.
“Há na vida momentos privilegiados em que parece que o Universo se ilumina, que a nossa vida nos revela sua significação, que queremos o destino mesmo que nos coube como se nós mesmos o tivéssemos escolhido; depois o Universo volta a fechar-se, tornamo-nos novamente solitários e miseráveis, já não caminhamos senão tateando num caminho obscuro onde tudo se torna obstáculo aos nossos passos.”
— «Témoignage» (Testemunho), Louis Lavelle
Mergulhei em uma profunda autoanálise para descobrir se houvera em minha vida momento assim. E sim, momentos preciosos — preciosos e ignorados.
Um desses tenha sido talvez uma das primeiras vezes da minha vida adulta que percebi que era realmente bom em alguma coisa.
Uma das disciplinas mais difíceis da graduação era a Fisiologia II. Amava aquela matéria. Dominei-a tão bem que logo os colegas pediram ajuda, e em poucos dias a grande mesa redonda de madeira viu as longas sessões de carteado darem lugar às minhas aulas particulares.
Foram momentos em que “o Universo se iluminou”. Momentos ignorados. Preferi, por diversas vezes, me colocar no papel de outra pessoa.
Ainda sem tomar consciência de sua importância, revivia estes momentos a cada curso, palestra ou treinamento que fazia. Um sentimento que retornou com mais força, mesmo que ainda parcialmente, quando em 2018 comecei a criar conteúdo nas redes sociais.
Personagem social
Comecei como a maioria: só queria ensinar o que sabia e compartilhar minhas paixões. Enquanto, é claro, construía uma presença digital como alavanca de crescimento de um negócio.
Entretanto, em algum momento tudo se perdeu.
Cheguei ao ponto onde não me enxergava mais na minha comunicação; minha identidade, personalidade e capital intelectual foram diluídos na sustentação de personagens e nas tentativas de agradar os algoritmos.
A criação de conteúdo deixou de ser uma satisfação e tornou-se um martírio. Tive um grande sucesso em construir um negócio no qual não queria estar nele.
Em meio a tantos formatos e métodos, perdi o controle sobre minha própria obra. Por sorte, parei antes de me perder completamente.
Diretor de personagens
Foi quando decidi que era hora de trabalhar nos bastidores.
E, junto de outros tantos “especialistas”, percebi que a maioria — para não dizer todos — está tentando ser alguém que não a si mesmo. Pessoas que assumem diferentes personagens e passam os dias construindo histórias que não são suas.
Mas não sem custo.
Essa fragmentação biográfica leva a um vazio existencial sem igual. As fronteiras do ser foram borradas pelo constante imperativo do parecer; na tentativa de viver várias vidas, terminam sem vida alguma.
Um castelo de mentiras, construído tijolo após tijolo.
Estou cada vez mais convencido de que a verdadeira tragédia da era digital não é o fracasso, mas o sucesso em construir uma identidade que não nos pertence.
Será que existe tormento maior que usar a própria voz para pronunciar palavras que não são nossas?
O canto da sereia
Acredito que o problema tenha sua raiz na crença da genialidade sem esforço; que nos faz crer que podemos ser qualquer coisa.
A diversidade de interesses é uma característica humana natural, mas apenas recentemente este fenômeno ganhou o rótulo sedutor de "multipotencialidade" — e, mais recentemente ainda, transformou-se na desculpa perfeita para a dispersão crônica e a falta de compromisso com o sacrifício.
Retalho após retalho, a vida se tornou uma vasta tapeçaria de projetos iniciados, de caminhos explorados e abandonados.
Por muito tempo, também acreditei nessa ilusão.
Com interesses variados e facilidade para aprender, vivi a multipotencialidade antes que alguém me explicasse seu significado; décadas antes da expressão cair nos lábios da internet.
Demorei, mas sou grato por ter percebido que a unidade narrativa é uma premissa da identidade — e de uma vida com sentido.
A multipotencialidade desconectada gera atos sem peça: como um ator que troca de papel a cada cena de espetáculo sem roteiro.
Muita ação; nenhuma direção.
O que nos falta é um fio condutor coerente — um projeto biográfico consciente que organize nossa multiplicidade.
Na obsessão contemporânea de monetizar possibilidades, acabamos perdendo de vista a questão mais crucial: o que, no fundo, somos chamados a ser.
A vida não é um catálogo de habilidades, mas uma história que se escreve com atos autorais. Quanto mais a pessoa multipotencial acumula habilidades, mais dilui sua identidade.
O mito da multipotencialidade é uma ilusão que serve como a desculpa perfeita para a falta de comprometimento biográfico.
Produz uma alienação do "eu profundo", que é substituído por "eus performáticos”: surge uma identidade fragmentada em personagens.
Fragmentação biográfica
Surge a máscara que o século XXI inventou para disfarçar uma velha tragédia: o medo de assumir o que nos cabe ser.
Não estou dizendo que você não deveria permitir-se explorar seus talentos, interesses e habilidades. Contudo, a ilusão da multipotencialidade surge como sintoma da recusa em aceitar nosso projeto vital porque dá trabalho tornar-se quem devemos ser.
Fragmentar-se não é sinal de versatilidade, mas de pânico ante o vazio de não ter um eixo.
A multipotencialidade, romantizada como liberdade, levou muitos de nós para dentro de uma jaula algorítmica: ao fragmentar nossa biografia, perdemos não só o controle sobre nossa obra, mas a capacidade de responder à única pergunta que importa:
Que vida eu quero contar no meu leito de morte?
Sem essa resposta, surge uma vida desarticulada que, sem seu fio condutor, vira um aglomerado de episódios, uma história sem sentido.
A biografia como eixo (e cura)
Reivindicar o direito à unidade biográfica — ainda que isso signifique desaparecer por um tempo dos algoritmos — é o ato mais revolucionário que um criador pode cometer hoje.
Sua presença online não pode depender da criação de um personagem principal — deve ser a revelação cuidadosa de quem você já é, um eco da sua biografia.
Fidelidade a si mesmo
Por décadas, invocamos nomes famosos como prova de que ser múltiplo é ser genial.
Steve Jobs dizia que a criatividade é apenas conectar pontos.
Leonardo da Vinci foi pintor, engenheiro, anatomista, inventor.
Goethe escreveu poesia, estudou botânica, cunhou teorias sobre luz e cor, e ainda gerenciava políticas públicas.
Porém ignoramos o que sustentava essa multiplicidade: um eixo interno claro, uma obsessão profunda e uma biografia coesa.
Jobs não era generalista — era um monge do design funcional.
Goethe, ainda que plural, via cada campo como expressão de uma só ideia: a forma viva em transformação.
Da Vinci, apesar do gênio, morreu inquieto, afogado em projetos inacabados.
Hoje, o mito da multipotencialidade promete liberdade, mas muitas vezes entrega dispersão.
Ser tudo virou sinônimo de não ser nada por inteiro.
De acumular cursos, rascunhos e projetos órfãos — enquanto a vida escorre pelos dedos.
O problema não está na multiplicidade em si, mas na ilusão de que ela basta. Quando a ideia de "ser multipotencial" vira um álibi para a falta de compromisso, o que resta não é liberdade — mas o vazio de uma vida onde tudo é possível e nada é vivido até o fim.
A vocação não é como um destino fixo, mas um chamado interno que organiza a multiplicidade. Um médico-filósofo não é "dois profissionais" (médico e filósofo), mas uma vida que pensa a cura.
A fidelidade a si mesmo não surge do acaso, mas é fruto de uma constante análise e reflexão sobre o nosso propósito, nosso projeto de vida — a história que estamos contando.
Uma curadoria biográfica que começa com os seguintes compromissos:
Descobrir o eixo que unifica interesses.
Rejeitar o que não serve ao projeto central.
Assumir a finitude como critério de seleção.
Não encare esse processo como uma limitação da liberdade. Muito pelo contrário. A verdadeira liberdade é a fidelidade ao próprio projeto de vida, não mera ausência de limites.
E as pessoas com muitos talentos reais?
Talentos são instrumentos, não fins. O gênio (como Cervantes ou Picasso) unifica sua diversidade em uma obra com assinatura, com sua personalidade.
Mas como fazer esse retorno ao eixo, como reconstruir uma biografia fragmentada pela dispersão?
A resposta surge não como ideia, mas como ação.
Agora que você entende a raiz do problema e por que a unidade biográfica é essencial, nos próximos pontos vou te mostrar exatamente como construir sua curadoria biográfica: os critérios práticos para descobrir seu eixo unificador e como transformar isso em uma marca pessoal autêntica e magnética.
Curadoria biográfica
A raiz mais profunda dessa condição está na
Continue a ler com uma experiência gratuita de 7 dias
Subscreva a Além da Dopamina para continuar a ler este post e obtenha 7 dias de acesso gratuito ao arquivo completo de posts.